23 de maio. Trânsito do inferno. Olhando pra frente um mar de luzes vermelhas e olhando para trás um mar de luzes amareladas. Aquele anda e pára que lembra o levanta e senta de igreja, sabe? Os pés acostumam com o movimento. Fazia tempo que não pegava esse tipo de inferno típico da cidade.
A lentidão nem é tão angustiante, é só ligar o rádio e ficar fazendo air drums, como eu faço. Sim, pessoas olham pra mim de um jeito estranho, mas ok, estou no meio do meu solo, me deixe em paz, por favor?
Daí um pouco a lentidão persiste por mais tempo e lá na frente uma aglomeração que todos que vivem nas ruas já viram: um grupo de 10 ou 15 motoqueiros em volta de um outro caído no chão. Perto deles dois carros parados com pisca-alerta ligado. Uma mulher grita desesperada no celular enquanto os motoristas que podem de fato continuar o seu caminho preferem ir devagar quase parando para ver a desgraça alheia. Enfim, a vida segue.
Mas fico sempre curioso pra saber como essa parada louca dos motoqueiros que param para se ajudar se propagou. É quase um clubinho secreto. Só que em vez de eles se reunirem em casas-de-árvore (ou o equivalente do seu bairro ou cidade ou país), eles o fazem na rua mesmo. Na frente de todo mundo, numa espécie de grito visual de “estamos aqui e quer saber? não estamos felizes!”.
Como isso começou? Porque quando um carro bate, os outros param porque um carro é grande e tal, meio difícil não parar, mas quando dá, vira aqui, vira ali, e todos seguem seu caminho, a não ser os envolvidos na parada. Alguém poderia citar a bondade e a solidariedade como motivos. Mas não sei. Pode até ser em parte por causa disso, mas é meio instintivo deles fazerem isso. Sendo culpa do cara caído ou não, eles se juntam. Como se fosse uma resposta automática.
Engraçado esses códigos de conduta não ditos. Existe o dos homens. O das mulheres. O das prostitutas. O dos namorados. O dos casados. O dos divorciados. E também o dos motoqueiros. Será que “baterás nos retrovisores alheios” está nele?
Texto: F. Garrido